Belo e comovente texto de sua neta lido na Missa de Corpo Presente
celebrada ontem com a numerosa participação de familiares e amigos
A pedido de várias famílias (ou a pedido de vários membros da
nossa enorme família) aqui fica o meu "até já" para a avó Bugia, e
uma foto da sua fera adormecida, que tirei na nossa última ida aos Soudos.
17.11.2013 Para a avó. O poeta Daniel Faria escreveu, uma vez, “Arruma as tuas alegrias,/ e faz as malas como se fosses emigrante”. Eu voltei a semana passada para a Suíça, de alegrias guardadas e a avó Bugia entre elas, na minha mala. Acontece-me com frequência que qualquer pedaço de céu azul, qualquer folha de árvore mais luminosa ou qualquer fragmento de vinha mais solarenga me fazem facilmente lembrar dos Soudos. A avó costumava rir-se desta minha extrema facilidade em ver em tudo um pouco do seu Ribatejo, deste meu amor tão entranhado à sua terra, que aprendi a guardar e a fazer crescer, muito através dos seus olhos e das suas histórias. As memórias que hoje guardo de tudo o que vivi naquela casa dos Soudos são, na verdade, tão minhas quanto suas, momentos que nunca presenciei, mas que imaginei pelo mundo que me descrevia ou pelos objectos que desencantava nas infinitas arrumações que fazia quando visitávamos os Soudos, determinada a manter e a impor a ordem no que era, para nós, o paraíso da desordem e das aventuras espalhadas por todos os cantos. Sempre me pareceu que, nos Soudos, a avó era um pouco como uma Senhora do Tempo, desempoeirando das gavetas os vestígios das histórias perdidas ou desfocadas pela impreteribilidade do Tempo, que então parava e regressava em vai-e-vens constantes e desvios impossíveis. Aqueles sempre foram os melhores dias das minhas férias, e foi assim que conheci a avó Vitória, e que aprendi a sonhar, nesse limbo de tempos e mundos entrelaçados, de personagens fascinantes, algumas que nunca conheci fora do meu imaginário de criança. Este ano que passou, pouca coisa me deixou tão feliz como voltar aos Soudos com a avó, na sua última ida lá, em Setembro, porque essa nossa casa nunca foi (nem nunca será) a mesma sem a sua presença. Mas não são apenas as coisas ou as casas que padecem das metamorfoses do tempo, já que também as pessoas crescem, se adaptam, se modificam. Nestes últimos anos, eu fui redescobrindo a avó, numa ternura diferente e mais crescida, embora eu nunca tenha deixado de ser a menina gulosa que lhe suplicava por um prato da sua maravilhosa açorda. E a avó tinha ainda os mesmos olhos vivos e malandros, e a costela ribatejana que um dia nos serviu um caldeirão de “pezinhos de porco”, prato que até ao último instante pensámos ser uma metáfora. Nesse fatídico dia, penso que primos, tios, pais, filhos e irmãos - na imensidade que sempre fomos naquela casa e naquela mesa de banquetes familiares -, todos demos graças pelo lado não ribatejano do avô, que olhava desconfiado como nós aqueles pedaços rosados de cartilagem e perguntava a uma avó deliciada, num misto de espanto e admiração, onde é que estava a parte que se comia. E se em criança aprendi a ouvir histórias, com o tempo também aprendi a contá-las e a encontrar imenso prazer nas visitas que fazia à avó no Terço, e nos postais que lhe mandava das minhas montanhas. Testemunhei ainda o privilégio de ser uma das poucas pessoas no mundo com uma avó que fazia Skypes, mandava e-mails e tirava fotos com o telemóvel. E a avó ria-se quando eu lhe dizia que, ao contar estas suas peripécias aos meus amigos, me tomavam, muitas vezes, por mentirosa. Sim, a avó era, de certa maneira, uma Senhora do Tempo, porque sabia viver em todos eles, e tirar o maior proveito de cada um: das alegrias do Passado e do entusiasmo na descoberta do Presente. Por várias vezes lhe disse – e aqui reitero – que um dia gostava de me casar nos Soudos, e que não sabia do que tinha mais saudades em Portugal, se do mar se da serra D’Aire, a quem a avó carinhosamente chamava de “fera adormecida”. E então sorria-me, meia incrédula, mas orgulhosa deste amor que eu tinha – e tenho – pelas suas raízes, e compreendia-me. E quando a distância aos Soudos se tornou, para si, demasiado cansativa, dizia-me: “Sabes, filha, a mim levas-me a ver o mar com uma cerveja fresquinha na mão e eu sou feliz.” E era verdade. E embora eu não goste de cerveja, e não partilhemos o mesmo gosto nos petiscos, com essa mesma avó também eu fui - e vou - aprendendo a ver e a procurar a felicidade das pequenas coisas. Dizem que a distância é uma questão de perspectiva, e eu descubro cada vez mais que sim. Quando ontem soube que a avó tinha partido para junto do avô, olhei (com a leve dúvida de quem verifica, mas com a certeza de quem sabe) e vi que estavam os dois na minha mala, arrumados, como dantes, com todas as alegrias. Quando nos habituamos a viver e a ver mais longe que a fisicidade do mundo, percebemos e aprendemos a verdade da permanência. E eu vi, no pôr-do-sol das minhas montanhas suíças, folhas luminosas e vinhas solarengas, e a terra com cheiro a figos e a Ribatejo. E vi, com extrema clareza, embora em dorso mais alto e mais imponente, os contornos de uma serra D’Aire adormecida e deslocada, talvez um pouco mais triste, mas a nossa. E então lembrei-me da questão da perspectiva e da impossibilidade da distância face à imortalidade dos afectos. Porque com mais ou menos bagagem, de alegrias arrumadas ou tristezas imprevisíveis, todos partimos, mais ou menos emigrantes. E à avó, ao avô e à serra D’Aire, levá-los-ei sempre na minha mala, no peso certo da permanência e na leveza imortal das alegrias. Bon voyage avó!
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