Em memória do meu
Avô Cândido
(1887 – 1966)
Havia
naquela figura uma cativante simpatia misturada com altivez ribatejana. Traços
que se moldaram no seio duma família rural abastada embora não latifundiária.
Na casa dos meus bisavós, pais do Avô Cândido, deveria respirar-se um profundo
e enraízado catolicismo que deu origem a várias vocações religiosas (três dos
meus tios-avôs foram padres jesuítas).
Coube
ao meu Avô a missão de continuar a
actividade agrícola do meu Bisavô Manuel Marcos Mendes. Os outros filhos
varões partiram com diferentes missões na vida. Além dos três religiosos, todos
mais velhos do que o meu Avô e que eu não conheci, posso lembrar-me de dois de
idade próxima da do meu Avô: o Dr. Carlos Mendes, o enorme “Senhor da Fátima”,
ligado à criação e organização dos Servitas de Fátima e que também foi
Presidente da Câmara de Torres Novas e deputado à Assembleia Nacional, o Dr.
Augusto Mendes que foi médico com consultório estabelecido na mesma Vila.
Lembro ainda a bem disposta Tia Cândida que enviuvara cedo dum tal Dr. Diniz da
Fonseca e que eu sempre conheci vestida de preto. Dos dois outros descendentes
dos meus bisavôs Manuel Marcos Mendes e Teresa de Azevedo, pràcticamente não
tenho referências, pelo que peço desculpa de os passar em branco. Queria
contudo referir a curiosa práctica daquela família de repetir nomes: Quando o
meu Avô nasceu já teria o seu irmão mais
velho, Cândido decidido ingressar no Seminário. Então o Bisavô baptizou um segundo filho com o mesmo nome e,
não contente com isso, também uma filha com o nome de Cândida .
A
empresa agrícola do meu Avô prosperou em diversificadas e bem sucedidas
actividades, nas quais se destacaram, além das tradicionais produções agrícolas
da região, o comércio de vinho e aguardentes. Conseguiu de facto aliar ao
desenvolvimento da produção agrícola onde se destacam a melhoria das vinhas e a
plantação de novos figueirais, a aquisição de armazéns e adegas para apoiar a
sua actividade comercial. No capítulo da
agro-indústria gostaria ainda de referir o lagar de azeite que ele instalou ao
lado de casa (é bem possível que tenha remodelado totalmente um anterior lagar
artesanal que existiria no mesmo local). Recordo o característico ronco do
velho motor “Lister”? que através dum complicado sistema de transmissão por
correias conseguia pôr em movimento vários engenhos ao mesmo tempo: as pesadas
mós de pedra que transformavam a azeitona em bagaço gordo, as bombas de pressão
que levantavam lentamente os grossos embolos das prensas, onde as vagonetas com
uma dose de capachos empilhados e cheios do tal bagaço gordo eram comprimidas.
Então o precioso líquido amarelo reluzente começava finalmente a escorrer ( a
propósito desta descrição não resisto a trautear uma adivinha da minha
meninice: “verde foi meu nascimento, mas de luto me vesti, para dar a luz ao
mundo, mil tormentos padeci”). Para completar aquela teia de ligações devo
ainda referir o gerador que nos brindava com o luxo da luz eléctrica. Mas a
actividade mais característica daquela região era o figo seco ao Sol em
tabuleiros. Estes eram empilhados todos
os dias ao anoitecer, ou á pressa, quando vinham os indesejáveis aguaceiros de
Verão. O figo melhor era escolhido manualmente e separado para consumo humano,
o restante ia para a tulha para ser transformado em aguardente.
A
complementar a produção própria de vinhos, aguardentes, cereais, figo e azeite,
a actividade agro-pecuária (rebanho e pocilga), particava o meu Avô o comércio
destes produtos a partir de armazéns e adegas próprios e alugados o que
implicava uma constante expedição e recepção de mercadorias na Estação de
Caminho de Ferro da Lamarosa. Toda esta diversificada actividade que exigia já
uma complexa logística de transportes era gerida pela cabeça do meu Avô com um
apoio administrativo mínimo (lembro um escriturário de mangas de alpaca nos
braços escrevinhando em grandes livros de controlo de produções, vendas e
jornas; um pouco mais evoluídos eram os contactos comerciais para os quais já
dispunha duma máquina de escrever).
A primeira metade do nosso século XX pode, em certo sentido, ser
considerada como o canto do cisne de nossa agricultura e do qual tiraram
partido alguns activos empresários agrícolas, como foi o caso do meu Avô. A Europa foi quase toda devastada por duas
guerras mundiais, a Espanha ficou na miséria depois da terrível guerra civil
que serviu de ensaio para a segunda
guerra mundial. A situação excepcional de Portugal fora do teatro das guerras
criou oportunidades de negócio que foram episòdica e descoordenadamente
aproveitadas, mas o fosso do nosso atraso tecnológico continuava a cavar-se e a
nossa actividade agrícola baseada na exploração duma mão-de-obra rural
abundante caminhava para um beco sem saída.
Vi
a angústia e o desalento corroerem os últimos anos de vida activa do meu Avô.
Nunca conseguiu aceitar que a sua idade e saúde exigiam que se retirasse dos
negócios que ele antevia cada vez mais difíceis e de rendibilidade mais
problemática. Os custos de produção subiam e os preços de venda dos produtos
agrícolas não acompanhavam; a mão-de-obra agrícola tornou-se escassa com o
dealbar da emigração primeiro para as cidades e depois para a França; a
mecanização agrícola (de que ele foi um dos pioneiros na região) não resolvia
todos os problemas pois era de muito limitada utilização em pequenas extensões
de campos irregulares com velhas vinhas e olivais plantados a esmo. Seria
necessário começar quase tudo de novo, reequacionar toda a produção e
comercialização agrícola, mas ele já não tinha nem saúde, nem energias, nem
capitais para isso.
Como deve
ter sido penoso para ele ver uma pujante casa agrícola, que recebera das mãos
do bisavô Marcos, continuara e engrandecera, sem futuro! Mas julgo que o que
lhe era mais insuportável era o
afastamento da azáfama em que vivera imerso e empenhado durante tantos anos sem
outros interesses alternativos para além duma rápida leitura do jornal ou dumas partidas de sueca aos serões. Os
próprios Domingos, para além do cumprimento das obrigações religiosas, eram
preenchidos por visitas às fazendas para se inteirar do estado das culturas e
por parlamentações com capatazes e encarregados de ranchos. Havia contudo um
luxo que se permitia e que era ao mesmo tempo uma prescrição médica: a cura de
águas no Luso onde se instalava por uns dias com a minha Avó numa pensão já
desaparecida. Ainda me lembro de os ir lá levar para uma das suas últimas
estadias. O velho e grande carro americano já não conseguiu fazer a viagem sem
uma paragem em Coimbra onde ficámos retidos para uma reparação de recurso.
Sofridos foram os seus últimos anos em que a falta de interesses e ocupações
alternativas lhe alimentaram um temperamento obcessivo que se tornou um
calvário para ele e para os que viviam à sua volta ( sobretudo para a minha Avó
Vitória que apelava sem êxito para que ele aceitasse a sua condição). Nem as
estadias em casa dos filhos no Porto e em Lisboa, nem a companhia dos netos
foram remédio ou entretenimento suficientes para lhe fazer esquecer aquela
revolta interior e profunda desadaptação que o roeu por dentro até o seu
coração não aguentar mais. Morreu no meio do bairro dos Olivais em construção,
onde dava o seu passeio higiénico e tentava distrair-se metendo conversa com os
operários das obras (era o dia 16 de Fevereiro de 1966, completara há poucos
dias 79 anos de idade).
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