quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Em memória do meu Avô Cândido

Texto escrito em 1999 e agora publicado neste blog:

Em memória do meu Avô Cândido  

                                         (1887 – 1966)


                        Havia naquela figura uma cativante simpatia misturada com altivez ribatejana. Traços que se moldaram no seio duma família rural abastada embora não latifundiária. Na casa dos meus bisavós, pais do Avô Cândido, deveria respirar-se um profundo e enraízado catolicismo que deu origem a várias vocações religiosas (três dos meus tios-avôs foram padres jesuítas).

                        Coube ao meu Avô a missão de continuar a  actividade agrícola do meu Bisavô Manuel Marcos Mendes. Os outros filhos varões partiram com diferentes missões na vida. Além dos três religiosos, todos mais velhos do que o meu Avô e que eu não conheci, posso lembrar-me de dois de idade próxima da do meu Avô: o Dr. Carlos Mendes, o enorme “Senhor da Fátima”, ligado à criação e organização dos Servitas de Fátima e que também foi Presidente da Câmara de Torres Novas e deputado à Assembleia Nacional, o Dr. Augusto Mendes que foi médico com consultório estabelecido na mesma Vila. Lembro ainda a bem disposta Tia Cândida que enviuvara cedo dum tal Dr. Diniz da Fonseca e que eu sempre conheci vestida de preto. Dos dois outros descendentes dos meus bisavôs Manuel Marcos Mendes e Teresa de Azevedo, pràcticamente não tenho referências, pelo que peço desculpa de os passar em branco. Queria contudo referir a curiosa práctica daquela família de repetir nomes: Quando o meu Avô nasceu  já teria o seu irmão mais velho, Cândido decidido ingressar no Seminário. Então o Bisavô  baptizou um segundo filho com o mesmo nome e, não contente com isso, também uma filha com o nome de Cândida .

                        A empresa agrícola do meu Avô prosperou em diversificadas e bem sucedidas actividades, nas quais se destacaram, além das tradicionais produções agrícolas da região, o comércio de vinho e aguardentes. Conseguiu de facto aliar ao desenvolvimento da produção agrícola onde se destacam a melhoria das vinhas e a plantação de novos figueirais, a aquisição de armazéns e adegas para apoiar a sua actividade comercial.  No capítulo da agro-indústria gostaria ainda de referir o lagar de azeite que ele instalou ao lado de casa (é bem possível que tenha remodelado totalmente um anterior lagar artesanal que existiria no mesmo local). Recordo o característico ronco do velho motor “Lister”? que através dum complicado sistema de transmissão por correias conseguia pôr em movimento vários engenhos ao mesmo tempo: as pesadas mós de pedra que transformavam a azeitona em bagaço gordo, as bombas de pressão que levantavam lentamente os grossos embolos das prensas, onde as vagonetas com uma dose de capachos empilhados e cheios do tal bagaço gordo eram comprimidas. Então o precioso líquido amarelo reluzente começava finalmente a escorrer ( a propósito desta descrição não resisto a trautear uma adivinha da minha meninice: “verde foi meu nascimento, mas de luto me vesti, para dar a luz ao mundo, mil tormentos padeci”). Para completar aquela teia de ligações devo ainda referir o gerador que nos brindava com o luxo da luz eléctrica. Mas a actividade mais característica daquela região era o figo seco ao Sol em tabuleiros. Estes  eram empilhados todos os dias ao anoitecer, ou á pressa, quando vinham os indesejáveis aguaceiros de Verão. O figo melhor era escolhido manualmente e separado para consumo humano, o restante ia para a tulha para ser transformado em aguardente.

                        A complementar a produção própria de vinhos, aguardentes, cereais, figo e azeite, a actividade agro-pecuária (rebanho e pocilga), particava o meu Avô o comércio destes produtos a partir de armazéns e adegas próprios e alugados o que implicava uma constante expedição e recepção de mercadorias na Estação de Caminho de Ferro da Lamarosa. Toda esta diversificada actividade que exigia já uma complexa logística de transportes era gerida pela cabeça do meu Avô com um apoio administrativo mínimo (lembro um escriturário de mangas de alpaca nos braços escrevinhando em grandes livros de controlo de produções, vendas e jornas; um pouco mais evoluídos eram os contactos comerciais para os quais já dispunha duma máquina de escrever).

A primeira metade do nosso século XX pode, em certo sentido, ser considerada como o canto do cisne de nossa agricultura e do qual tiraram partido alguns activos empresários agrícolas, como foi o caso do meu Avô.  A Europa foi quase toda devastada por duas guerras mundiais, a Espanha ficou na miséria depois da terrível guerra civil que serviu  de ensaio para a segunda guerra mundial. A situação excepcional de Portugal fora do teatro das guerras criou oportunidades de negócio que foram episòdica e descoordenadamente aproveitadas, mas o fosso do nosso atraso tecnológico continuava a cavar-se e a nossa actividade agrícola baseada na exploração duma mão-de-obra rural abundante caminhava para um beco sem saída.

                        Vi a angústia e o desalento corroerem os últimos anos de vida activa do meu Avô. Nunca conseguiu aceitar que a sua idade e saúde exigiam que se retirasse dos negócios que ele antevia cada vez mais difíceis e de rendibilidade mais problemática. Os custos de produção subiam e os preços de venda dos produtos agrícolas não acompanhavam; a mão-de-obra agrícola tornou-se escassa com o dealbar da emigração primeiro para as cidades e depois para a França; a mecanização agrícola (de que ele foi um dos pioneiros na região) não resolvia todos os problemas pois era de muito limitada utilização em pequenas extensões de campos irregulares com velhas vinhas e olivais plantados a esmo. Seria necessário começar quase tudo de novo, reequacionar toda a produção e comercialização agrícola, mas ele já não tinha nem saúde, nem energias, nem capitais para isso.

                        Como deve ter sido penoso para ele ver uma pujante casa agrícola, que recebera das mãos do bisavô Marcos, continuara e engrandecera, sem futuro! Mas julgo que o que lhe era mais insuportável  era o afastamento da azáfama em que vivera imerso e empenhado durante tantos anos sem outros interesses alternativos para além duma rápida leitura do jornal ou  dumas partidas de sueca aos serões. Os próprios Domingos, para além do cumprimento das obrigações religiosas, eram preenchidos por visitas às fazendas para se inteirar do estado das culturas e por parlamentações com capatazes e encarregados de ranchos. Havia contudo um luxo que se permitia e que era ao mesmo tempo uma prescrição médica: a cura de águas no Luso onde se instalava por uns dias com a minha Avó numa pensão já desaparecida. Ainda me lembro de os ir lá levar para uma das suas últimas estadias. O velho e grande carro americano já não conseguiu fazer a viagem sem uma paragem em Coimbra onde ficámos retidos para uma reparação de recurso. Sofridos foram os seus últimos anos em que a falta de interesses e ocupações alternativas lhe alimentaram um temperamento obcessivo que se tornou um calvário para ele e para os que viviam à sua volta ( sobretudo para a minha Avó Vitória que apelava sem êxito para que ele aceitasse a sua condição). Nem as estadias em casa dos filhos no Porto e em Lisboa, nem a companhia dos netos foram remédio ou entretenimento suficientes para lhe fazer esquecer aquela revolta interior e profunda desadaptação que o roeu por dentro até o seu coração não aguentar mais. Morreu no meio do bairro dos Olivais em construção, onde dava o seu passeio higiénico e tentava distrair-se metendo conversa com os operários das obras (era o dia 16 de Fevereiro de 1966, completara há poucos dias 79 anos de idade). 


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