domingo, 10 de fevereiro de 2019

Artigo publicado na revista "Nova Augusta" nº30



Carlos Azevedo Mendes e os Congressos das Misericórdias (este texto tem como fonte principal o livro da autoria do seu sobrinho Dr. Carlos Augusto Azevedo Mendes Dinis da Fonseca e intitulado “História e Actualidade das Misericórdias”)


A dedicação de Carlos Azevedo Mendes à causa das Misericórdias não se confinou a Torres Novas. Desde que surgiu a ideia (em 1922) da realização do 1ª Congresso Nacional destas instituições que ele se envolveu na sua preparação e na defesa da tese da autonomia das Misericórdias contra a criação dum imposto em benefício das mesmas.  Para ele, esta segunda opção iria colocar as Misericórdias na dependência dos governos e da política.  O que considerava necessário era reparar as injustiças causadas às Misericórdias pelas leis liberais conhecidas com “leis de desamortização” de 1861 e 1866 (1). Sobre este assunto, Carlos Azevedo Mendes trocou correspondência com Salazar em Outubro de 1923 quando este tinha acabado de terminar o seu mandato como Provedor da Misericórdia de Coimbra (2).
Parece que nessa altura os dois partilhavam a mesma opinião e contavam com o apoio parlamentar de Joaquim Dinis da Fonseca (3). Este tinha apresentado na Câmara dos Deputados um projecto de decreto que não chegou a ser apreciado e que daria às Misericórdias a possibilidade de não desamortizarem imediatamente os seus bens de raiz e criaria um consolidado-ouro de 6% para actualizar os juros de 2,1% que era o que as Misericórdias estavam a receber pelos títulos das desamortizações (4).
Na defesa publica da sua tese, e pouco tempo antes da realização do 1º Congresso, Carlos Azevedo Mendes concedeu uma entrevista ao jornal Novidades no dia 24 de Janeiro de 1924 onde falou da Caridade como fonte inesgotável das receitas das Santas Casas ; na sua confiança na generosidade dos Torrejanos que tinham doado ao longo dos tempos à Misericórdia local um património avultado, e no golpe fatal que a desamortização imposta pelo Estado liberal tinha vibrado neste património e na estabilidade financeira de todas as Misericórdias. Considerava, portanto, que era necessário reparar a injustiça cometida e que essa era a tese que o Congresso devia defender.
Não restam dúvidas de que foi a angustiante situação financeira em que viviam as Misericórdias na sua generalidade o principal móbil para a realização deste primeiro congresso que teve lugar em Lisboa entre 16 e 18 de Março de 1924 com a presença de 261 congressistas.
Nele se debateram duas teses principais: uma que reclamava justiça e independência em relação ao Estado e outra que aceitava viver à sombra do mesmo Estado e dos proveitos das contribuições. Os defensores desta segunda tese também aceitavam os princípios de justiça e autonomia defendidos pela primeira, mas parece que não confiavam que fossem suficientes para superar a aflitiva situação financeira.



(1) Estas leis obrigaram as Misericórdias a venderem os seus patrimónios não afectos às suas actividades pias e de benemerência. Estas vendas em hasta pública foram feitas muitas vezes em condições desvantajosas para as Misericórdias. Além disso, foram obrigadas a aplicar o produto das vendas em títulos de dívida pública com juros fixos e reduzidos, o que a prazo se revelou um enorme desastre financeiro para estas instituições. 
(2) Mais tarde, num discurso proferido no IV Congresso, Carlos Azevedo Mendes referir-se-á a esta troca de correspondência. Ver Actas do IV Congresso das Misericórdias, 1959, vol. III,  pg. 162.  Quanto à carta de resposta de Salazar (doc. Inédito) ver o Anexo quinto do livro já citado “História e Actualidade das Misericórdias” que transcreve este documento.
(3) Figura politica próxima de Carlos Azevedo Mendes desde o tempo de estudantes em Coimbra e militantes do CADC.
(4)  Diário do Governo, II Série, 20 de Março de 1922

























Embora uma análise detalhada deste congresso esteja fora do âmbito deste artigo, poderemos acrescentar que ele teve efeitos práticos com a publicação de legislação que criou um adicional de 5% sobre todas as contribuições gerais directas, que seria entregue às Comissões Municipais de Assistência e que o distribuiriam pelas Misericórdias e outras instituições de beneficência privada dos respectivos concelhos. Além disso foi uma primeira manifestação colectiva da grande maioria das misericórdias nacionais que assumiram o seu congresso como uma forma de pressão junto do governo republicano. Infelizmente, e conforme temiam os defensores da primeira tese, o intervencionismo estatal na vida funcional das Misericórdias tornou-se excessivo e as mesmas continuaram a viver com imensas dificuldades financeiras (5).
Face à situação criada logo se pensou na realização doutro congresso, o que aliás vinha na sequência do que se falara no encerramento do primeiro (6).
Este segundo Congresso realizou-se entre os dias 19 e 22 de Maio de 1929 na sede da Misericórdia do Porto com a presença de 294 congressistas (7), mais 33 do que no congresso anterior. Também neste congresso Carlos Azevedo Mendes tem uma participação activa sempre na defesa da autonomia das Santas Casas e reclamando para as suas assembleias gerais a aprovação das contas, missão que não deveria competir às entidades estatais (8).  Na defesa desta tese contou com o apoio do Provedor da Misericórdia do Porto que foi o anfitrião deste congresso.
O Dr. Joaquim Dinis da Fonseca leu as Conclusões do Congresso onde se destacam:
- o pedido de actualização dos juros dos títulos do Estado que as Misericórdias tinham sido obrigadas a adquirir pelas leis liberais da desamortização;
- a reafirmação do caracter privado das Misericórdias mas que não impede que o Estado as deva ajudar financeiramente
- a reclamação da aprovação das contas para as Assembleias Gerais das Misericórdias e o envio em seguida das mesmas à Direcção Geral de Assistência.
O terceiro Congresso efectuou-se em Setúbal entre os dias 22 e 25 de Maio de 1932 e com a presença de 269 congressistas (9).
Neste Congresso as questões financeiras já não tiveram a relevância dos dois anteriores, embora ainda tenha havido polémica por causa dos critérios utilizados pelas Comissões Municipais de Assistência na distribuição dos subsídios às Misericórdias, os quais foram objecto de acesas críticas. Alguns congressistas contestaram os critérios que estavam a ser utilizados e pugnaram por uma distribuição em função do número de habitantes da área abrangida por cada Misericórdia e não em função da quantidade de serviços prestados, de difícil mensuração. Mais uma vez o Dr. Joaquim Dinis da Fonseca teve um papel fulcral nesta controvérsia e prevaleceu o critério que vinha a ser utilizado e que tinha a participação do Conselho de Inspecção das Misericórdias (10).

(5) Ver: “História e Actualidade das Misericórdias” pg. 169 e Portugaliae Monumenta Misericordiarum,Introdução do vol. 9, pg.23.
(6) Idem , pg.  170
(7) Segundo Congresso das Misericórdias, 1930, pg.5
(8) Idem, pg. 167
(9) Terceiro Congresso das Misericórdias, 1935
(10) Idem, pgs. 37 e segs. 
























Este Congresso, mais que os anteriores, focou importantes problemas da área da saúde publica e da assistência social, tendo o Dr. Carlos Azevedo Mendes falado da protecção infantil à qual a Santa Casa torrejana estava a dedicar-se com empenho (11). A sessão de encerramento foi presidida na primeira parte pelo Dr. Carlos Azevedo Mendes o que indicia o crescente reconhecimento do seu trabalho em prol das Misericórdias em geral e da de Torres Novas em particular. Em Setúbal, no decorrer do III Congresso ficou resolvido que o IV Congresso se realizaria em Braga no ano de 1936.
Entretanto, em 6 de Dezembro de 1934, Carlos Azevedo Mendes é escolhido numa Assembleia das Misericórdias realizada em Coimbra como representante das mesmas na futura Câmara Corporativa (12).   Nesta sua nova qualidade, acompanhou os trabalhos preparatórios para o novo Congresso e tentou ultrapassar o pessimismo com que algumas Misericórdias, nomeadamente a de Braga, encaravam esta realização.
O grau de interferência que os governos saídos da Revolução de 28 de Maio de 1926 estavam a ter nas Misericórdias está bem patente no Relatório do Representante das Misericórdias na Câmara Corporativa – legislatura 1934-1938 onde, na pg. 10, Carlos Azevedo Mendes escreve o seguinte: “Ouvido S. Exª o Sr. Ministro do Interior sobre a realização do Congresso, escolhidas as teses e assentes todos os pormenores, a Misericórdia de Braga marcou o dia da sessão inaugural. Mas uns dias antes um telefonema do Ministério do Interior anunciava-me que S. Exª o Sr. Ministro precisava de me falar. O Governo, em vésperas da publicação do Código Administrativo, julgava oportuno o adiamento do Congresso… E o Congresso não se realizou”.
Estas linhas são bem significativas do grau de ingerência que o Governo estava a ter em relação às Misericórdias. Embora Carlos Azevedo Mendes depositasse esperanças num denominado “espírito novo corporativo” a construir pelo nascente “Estado Novo” e sob a batuta do seu amigo Salazar, a verdade é este “Estado Novo” caminhou para uma afirmação ditatorial e centralizadora afastando ou silenciando todas as vozes críticas que surgiam no seu caminho (incluindo algumas que dirigiam misericórdias).
Depreende-se que a governação chefiada por Salazar não estava nada interessada na realização dum novo Congresso das Misericórdias onde fosse publicamente reclamada a sua autonomia (difícil de controlar pelo poder central) e a compensação do desfalque financeiro a que as Misericórdias tinham sido submetidas no passado com as leis da desamortização já referidas (objectivo secundarizado por Salazar para dar prioridade ao reequilíbrio das contas públicas). Assim, passaram 22 anos até surgir a oportunidade da nova convocação do IV Congresso, mas num formato completamente diferente e integrado nas Comemorações do V Centenário do Nascimento da fundadora das Misericórdias portuguesas – a Rainha Dona Leonor. A iniciativa da sua realização pertenceu à Comissão Nacional destas Comemorações que nomeou uma Comissão Executiva para o efeito e o Dr. Carlos Augusto Dinis da Fonseca (alto funcionário da Dir.Geral de Assistência e sobrinho de Carlos Azevedo Mendes) para seu Secretário-Geral (13).

(11) Idem, pg. 382. Em 1927 tinha sido inaugurado o Asilo-creche da Misericórdia de Torres Novas com a presença do Presidente da República (ver “Anais de Misericórdia” pg. 126)
(12) Sobre esta escolha ver Revista Nova Augusta nº28, pg.13 e nota 3 nesta mesma página. Aí afirmo que Carlos Azevedo Mendes foi escolhido num Congresso o que não é verdade. Tratou-se somente de uma Assembleia Geral das Misericórdias convocada para o efeito.                                                         Admito que a proximidade de Carlos Azevedo Mendes com Salazar tenha pesado nesta escolha.
(13) O Dr. Carlos Augusto Dinis da Fonseca fez grande parte da sua carreira profissional como quadro da Direcção Geral de Assistência onde atingiu o posto de Inspector Chefe da Assistência Social.



























Nessa altura, estamos em 1958, as Misericórdias funcionavam num registo diferente, quase como agências públicas locais de beneficência e muito dependentes dos dinheiros públicos. Haveria algumas, como seria o caso de Torres Novas que se esforçavam por conseguir a sua autonomia com inventivas iniciativas locais como saraus, festivais e cortejos de oferendas (14).
A realização do IV Congresso em simultâneo com as comemorações do V Centenário do nascimento da Rainha Dona Leonor foi mais uma manifestação de propaganda do Estado Novo (15) e que se realizou entre os dias 3 e 6 de Dezembro. A cerimónia de abertura nos Jerónimos foi presidida pelo Cardeal Cerejeira e a sessão inaugural no salão das lotarias da Misericórdia de Lisboa, foi presidida pelo chefe de Estado, Almirante Américo Tomás. A feição reivindicativa e de procura de sã autonomia tinha desaparecido na onda avassaladora de controle e centralização do Estado Novo. As Misericórdias tinham ficado reféns dos esquemas de subsidiação do Estado, situação contra a qual tinha lutado desde o primeiro Congresso Carlos Azevedo Mendes e que na altura contava com o apoio do Dr. Salazar. Este, nos finais da 1ª República, e ainda sem responsabilidades governativas, tinha defendido publicamente essa autonomia e justa compensação financeira das Misericórdias, conforme foi referido no início deste artigo.
 Não quero contudo menosprezar a valia técnica, histórica e doutrinária dos trabalhos desenvolvidos no âmbito deste IV Congresso onde intervieram figuras como o D. Manuel Trindade Salgueiro, o Dr. Marcello Caetano, o Director da Faculdade de Medicina de Lisboa, o Bastonário da Ordem dos Médicos, o Dr. Miller Guerra, o Dr. Azeredo Perdigão e o Director da Faculdade de Direito de Coimbra.
A análise destes conteúdos ultrapassa o âmbito deste artigo mas pode ser feita através da leitura das Actas deste IV Congresso das Misericórdias publicadas em três volumes em 1959. Refiro no entanto a intervenção de D. Manuel Trindade Salgueiro que defendeu a tese da subordinação das misericórdias às dioceses e seus bispos, tese que o Dr, Marcelo Caetano contrariou no seu discurso. No entanto a tese do prelado Trindade Salgueiro foi secundada por várias outras teses enviada ao congresso, mas não por dois especialista na matéria – Artur Magalhães Basto e Fernando da
Silva Correia(16)
Correndo o risco de ser inconveniente eu diria que este Congresso não passou de uma laboriosa encenação na tentativa de manutenção do status quo do Estado Novo cada vez mais contestado interna e internacionalmente. Correndo também o risco de tentar interpretar estados de alma, a postura de Carlos Azevedo Mendes na sessão de abertura deste Congresso (captada num instante fotográfico que se publica em anexo) parece reveladora dum desânimo de quem sente os ideais de autonomia e justiça para as Misericórdias postergados.
Carlos Azevedo Mendes teve direito a usar da palavra na sessão de encerramento presidida pelo Ministro da Saúde e Assistência da altura, Dr. Henrique Martins de Carvalho. Fê-lo como decano dos Provedores e em nome da todas as Misericórdias, mas o tempo de ser figura activa e actuante das Misericórdias já tinha passado (17).    














(14) Entre 1945 e 1962 foram realizados pela Misericórdia de Torres Novas 17 cortejos de oferendas.   Cf. “Anais da Misericórdia” ed. da Santa Casa da Misericórdia de Torres Novas 2017
(15) Esta opinião é corroborada pelos autores do Vol. 9 da” Portugaliae Monumenta Misericordiarum” na sua Introdução pg. 24.
(16) Ver “História Breve das Misericórdias 1498-2000”pgs. 113, 114 e 115
(17) Actas do IV Congresso das Misericórdias, 1959, Vol. III, pgs. 158 e segs.                                           
 Carlos Azevedo Mendes tinha terminado, a seu pedido, funções como Deputado, no ano anterior de 1957, no final da VI legislatura da Assembleia Nacional.





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