quinta-feira, 2 de março de 2023

Soudos - recordações

19. SOUDOS - Recordações dos seus ofícios artesanais (escrito em Abril de 1999) É uma aldeia do interior ribatejano, bastante mais perto do mar do que da raia espanhola. Mas entre o mar e a aldeia eleva-se a Serra d’Aire pequena, mas barreira bastante para muitas das humidades atlânticas. Assim o clima é seco com Invernos frios e Verões com calores de rachar. Os poços dão para regar umas pequenas hortas e pomares. Para beber, a maioria das casas tinham as suas cisternas que recolhiam dos telhados as águas das poucas chuvas. É uma espécie de Algarve sem mar com figueiras e amendoeiras mas também com muitas oliveiras e algumas cerejeiras. A energia eléctrica pública chegou já eu era menino espigado e a água canalizada pública só uns trinta anos depois. Instalaram recentemente uma central de bombagem ao lado do cemitério que puxa água do Castelo do Bode e a distribui pelas aldeias da região. Mas a chegada destas infra-estruturas do chamado progresso não foram suficientes para reanimar a economia rural em franca recessão. Os múltiplos ofícios artesanais que animavam económica e socialmente a aldeia foram fechando uns atrás dos outros por falta de clientes ou por velhice e incapacidade dos seus donos. Assim, a pequena comunidade rural quase auto-suficiente transformou-se num incaracterístico dormitório de gentes que trabalham nas vilas e cidades mais póximas. - Lembro o funileiro que soldava a lata e que fabricava e reparava múltiplos utensílios ( em Tomar ainda se mantem esta actividade tradicional que continua a ter saída mas mais como artesanato turístico); - Lembro o ferrador que punha as ferraduras em brasa na sua forja a carvão e depois as cravava nos cascos das cavalgaduras que para o efeito eram imobilizadas numas giolas de madeira e obrigadas a levantar à vez cada uma das patas; - Lembro a oficina metalúrgica onde se reparavam as alfaias agrícolas e se fabricavam noras de elevação de água movidas pela força de obedientes mulas ou problemáticos gericos; - Lembro ainda uma oficina de tanoeiro onde já labutavam vários artífices e que fabricava barris que eram expedidos para as diversas regiões do país produtoras de vinho; - Lembro também as várias destilarias que fabricavam aguardente a partir do figo seco da região e as diversas adegas que iam produzindo vinho para consumo próprio ou para as tabernas das redondezas; - Lembro o lagar de azeite construído pelo meu Avô onde havia um luxo dum gerador eléctrico que nos alumiava nas noites de Inverno (só no final da década de 50 é que as velas e candeeiros ficaram sem préstimo com a chegada da iluminação pública a que já fiz referência); - Lembro um improvisado matadouro de suínos que todas as semanas nos brindava com altas berrarias dos bichos antes de serem esfaquiados; - Lembro por (e muitas outras coisas ficarão por lembrar) o quotidiano trabalho do padeiro local com o seu forno a lenha que exalava pela aldeia um gostoso cheiro a pão acabado de cozer. (acrescento de Abril de 2004) Não quero com estas recordações esquecer a vida dura e miserável que levavam a maioria das gentes que não tinham outros recursos para além dos seus braços e que trabalhavam de Sol a Sol nas fazendas, adegas, destilarias e lagares, quando era tempo disso, dos proprietários agrícolas da terra. Não quero esquecer a praga do alcoolismo que corroía a incipiente vida social que se gerava à volta das tabernas. Não quero também esquecer o frio que se rapava no Inverno, o calor que se suava no Verão e a fome que às vezes batia à porta dos desafortunados pela doença e pela desorientação da bebedeira

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